Mirian Goldenberg > Como transformar monstros assustadores em anti-heróis divertidos Voltar
Comente este texto
Leia Mais
Independente do lobo que predomina quando respondemos a um desafio, duas questões tem de ser consideradas: (1) As pessoas entram no modo piloto automático várias vezes durante o mesmo dia, dando as mesmas respostas aos desafios cotidianos por insegurança ou irreflexão, ou ainda porque não são tão autoconscientes/racionais como imaginam. Ou seja, qualquer que seja o lobo, ele age inúmeras vezes sem que a pessoa tenha consciência disso.
Em 2023 li o livro Positividade tóxica do filósofo e psicólogo dinamarquês Svend Brinkmann que pretende ser um guia de 7 passos, mas com o objetivo de ser um guia “antiautoajuda”. O texto é inspirado no estoicismo, como formulado na Roma Antiga tanto por uma pessoa escravizada (Epiteto) quanto por um imperador (Marco Aurélio). Mas achei que o autor propõe uma variante do modo de vida estoico que difere do enfoque dos livros do Ryan Holiday.
Estudo todos os dias os estóicos para aprender a viver um dia de cada vez
As considerações deste comentário levam em conta o capÃtulo 5 - Desacelerar e saborear o instante - do livro Viver! Um manual de resiliência para um mundo imprevisÃvel de Frédéric Lenoir.
(2) A dispersão da atenção perturba nosso humor e nossas emoções, logo a única condição necessária para que o nosso cérebro produza as principais substâncias necessárias ao nosso bem-estar e ao nosso equilÃbrio emocional (dopamina ou a serotonina), é estarmos totalmente atentos ao que estamos fazendo (atenção plena, mindfulness). Teremos deficiência desse equilÃbrio, se realizamos uma tarefa pensando em outra coisa, ao fazermos várias coisas ao mesmo tempo, ou ao agirmos no piloto automático.
Vários séculos antes, Epicuro já nos convidava a aproveitar plenamente o momento presente para sermos felizes, e os sábios estoicos defendiam a "prosoché" como atitude de vida, a concentração no momento presente, livre dos apegos ao passado e das preocupações com o futuro. Montaigne insiste nos seus Ensaios na necessidade de tomar consciência e saborear os momentos felizes da existência, e de desfrutá-los plenamente, sem qualquer outra preocupação: “Quando danço, danço; quando durmo, durmo".
Entre nós há aqueles/aquelas que vivenciaram o desfazer de (quase) tudo que alicerçava suas vidas e se sobrou algo, ficou solto sem referências. Não restavam opções de fuga nem esconderijos. Embora surgissem pensamentos, sensações, emoções e sentimentos que apontassem para "coisas" que não existiam mais, de repente aquilo que é indestrutÃvel veio à tona trazendo uma profunda paz e um leve sorriso tomou suas faces. Sentiram um total desprendimento de tudo, apesar daquela ampla destruição.
Todos que passaram pela experiência descrita acima reconhecem que nosso estado natural é estar em paz, mas afirmam que a mente só conhece a paz como um conceito, então ela tentará criar paz, podendo até tornar esta paz uma prática para nos manter apegados ao reino das ideias e crenças pessoais. No entanto, o problema não está na mente, mas na identificação pessoal com os pensamentos que criam sofrimento, em acreditarmos em tudo que sentimos.
Curiosamente, depois de alguns dias ou semanas aquela paz, alegria e leveza extraordinárias sumiram de vez, ainda assim apenas muito poucos não notaram qualquer perda mantendo-se serenos, felizes e leves. A sensação de paz imperturbável só aumentava, pouco importando se havia pensamentos, sensações emoções e sentimentos desordenados ou confusão exterior. A mente agora pareia um céu vasto e sereno que não podia ser tocado por nada: nuvens, ventos, raios e chuvas.
Entre os que passaram por essa experiência também há os que dizem ter conhecido um medo nunca vivenciado antes, uma sensação de pânico absoluto que os arrastava para dentro do que parecia um vórtice de energia que fazia seus corpos tremerem. Embora houvesse todo esse pavor, nenhum desejo ou expectativa acompanhava este sentimento como é de costume, até que subitamente o medo se desfez e em seu lugar surgiu uma imensa paz, uma alegria transbordante.
A maioria de nós nega ou ignora nossa natureza dualista, embora a dualidade marque presença constante na experiência humana. A vida e a morte, o bem e o mal, o desejo e o medo coexistem em todas as pessoas e manifestam sua força em todos os aspectos da vida. Se sabemos o que é coragem, é porque conhecemos o medo; se reconhecemos a verdade, é porque já topamos com a mentira.
Como escreveu Clarice, se tirarmos nossos defeitos o edifÃcio inteiro pode cair
Se sentimos tristeza é porque desejamos a alegria
Somente ao abraçar a nossa dualidade é que nos libertamos dos comportamentos que poderão potencialmente nos prejudicar. Todos temos um lado obscuro - sombra -, afinal quem nunca agiu motivado por raiva e medo. Admitir que temos um lado sombrio não é possuir uma falha, mas reconhecer-se completo. Tal qual a ponta de um iceberg, somente uma pequena fração nossa está visÃvel ao mundo fÃsico. Sem ser visto e frequentemente ignorado, nosso universo é um lugar de ambiguidades, contradições, paradoxos.
Temerosos evitamos olhar dentro de nós mesmos; mas, em vez disso, fugimos mediante uma distração e nos recusamos a enfrentar nosso lado sombrio. Quando falhamos em admitir nossas vulnerabilidades e reconhecer nossos erros e malfeitos, inevitavelmente nos sabotamos quando almejamos alguma realização pessoal ou profissional. Então, a sombra não só ganha, mas nos faz estranhos perante nossos olhos. Bloqueia o autoconhecimento.
Em seu livro O Que Nos Faz Bons ou Mau, o psicólogo Paul Bloom mostra que bebês possuem uma apreciação geral do comportamento bom e mau, que abrange uma gama de interações, incluindo aquelas que provavelmente nunca viram antes. De fato, quando mostramos as mesmas cenas para crianças pequenas e perguntamos: “Quem foi legal? Quem foi bom?”, e “Quem foi ruim? Quem foi mau?”, elas responderam da mesma forma que os adultos, identificando o facilitador como agradável e o dificultador como mau.
TÃtulo correto do livro do cientista cognitivo (psicólogo) Paul Bloom: O Que Nos Faz Bons ou Maus.
Muitos de nós desconhecem, não acreditam ou negam que existam 3 qualidades básicas no ser humano, talvez porque elas foram enterradas e quase esquecidas: a inteligência, a cordialidade e a receptividade inatas. Todas as pessoas, em todos os lugares, no mundo inteiro, possuem essas qualidades e podem usá-las para ajudar a si mesmas e aos outros.
A inteligência inata está sempre acessÃvel, nos ajudando a solucionar nossos problemas em vez de piorá-los. Desde que não estejamos presos na armadilha da esperança e do medo, sabemos por instinto como agir corretamente. Em geral, se não obscurecermos nossa inteligência com a raiva, autoapreço ou ansiedade, percebemos o que pode melhorar ou agravar uma dada situação.
A cordialidade inata é nossa capacidade compartilhada de amar, de ter empatia e senso de humor. É também nossa capacidade de sentir gratidão, valorização e ternura. É o conjunto do que, com frequência, chamamos qualidades do coração. A cordialidade inata tem o poder de curar todos os relacionamentos, a relação com nós mesmos, com as pessoas, animais e com tudo que nos deparamos no dia a dia de nossas vidas.
A abertura inata mostra o grau de amplidão de nossas mentes, que expandem-se, são flexÃveis e curiosas e, portanto, sujeitas a prejulgamentos. Esse é o estado mental antes de nos fixarmos numa visão baseada no medo, em que todos são inimigos ou amigos, uma ameaça ou um aliado, alguém de quem gostamos ou não, ou a quem ignoramos. Mas, em sua essência, a mente que temos é aberta e receptiva.
Todos os nossos demônios e Lobos Maus não seriam uma defesa de nossos egos? Estes inflados, nos apresentam a ingenuidade. É aquela frase manjada : a soberba precede a queda ou como diria Riobaldo: o homem humano é o diabo!
Gostei da reflexão
Ressentimentos e egoÃsmos, apesar de comuns, não constituem nossa natureza básica. Sabemos como é reconfortante ser gentil, como amar tem o poder de transformar, que alÃvio sentimos quando nos libertamos de antigos rancores. Compassivos, percebemos que muitos agridem e falam coisas desagradáveis por causa do lobo raivoso. A maioria deles tem sido muito bem-sucedida em aumentar a negatividade e em insistir que o lobo zangado fique cada vez mais forte, enquanto o outro fita com olhos suplicantes.
Friedrich Nietzsche disse certa vez: Perdido seja para nós aquele dia em que não se dançou nem uma vez! E falsa seja para nós toda a verdade que não tenha sido acompanhada por uma risada!
Estou gostando cada vez mais do Venom. Ele tem senso de humor que é fundamental para enfrentar a dor de existir
Que tal pensar que sua mente (não fÃsica) influencia o seu cérebro atraves de fótons recebidos pela glândula pineal e parir dai o seu cérebro cria todo esse desconforto ?
Texto muito bom. O diálogo entre um avô (Ãndio norte-americano) com o seu neto está no livro O Salto da monja budista Pema Chödrön. Ela nos convida a começar a alimentar o lobo certo, recorrendo à nossa inteligência inata para perceber o que ajuda e o que fere, o que aumenta a agressividade e o que revela nossa bondade e benevolência. Desenvolver confiança na nossa bondade básica, nos livrando de antigas formas de imobilismo, escolhendo com sabedoria o que é bom pra nós e para os outros.
Você diz "me mostra os caminhos que ensinam a ter mais coragem e força para enfrentar de frente a dor e o sofrimento", mas acredito que os desafios diários demandam força, leveza ou ambos. Explico melhor no que postei sobre leveza/força mas o algoritmo pediu pra ser analisado pela Folha.
Sim, a distinção lobo certo e lobo errado pode ser imprecisa, mas entendo lobo certo aquele que cultiva o que tem natureza altruÃsta e é salutar para todos.
Eu estou começando a enxergar o lobo mau como um excelente conselheiro e companheiro, pois ele me mostra os caminhos que ensinam a ter mais coragem e força para enfrentar de frente a dor e o sofrimento
Sim, Mirian. Mas a confiança na nossa bondade básica é fundamental para podermos transformar dor em felicidade. A fim de encarar com honestidade a dor em nossas vidas, vamos começar a olhar com compaixão e sinceridade para o lobo mau que há em cada um. Reconhecemos com grande ternura o lobo zangado, hostil, que não perdoa. Aos poucos, essa parte de nosso ser torna-se familiar, porém não mais a alimentamos em favor da receptividade, inteligência e cordialidade.
Para reconhecer os lobos internos uns precisam apenas desacelerar, outros de uma pausa e ainda há aqueles que usam ambas. A celeridade da vida os faz crer que eles tem de ser mais rápidos, recorrendo as respostas prontas - os hábitos e padrões de conduta. Daà o hábito de agir com força, agressividade e prontidão, quando a vida demanda LEVEZA (lobo bom) para aceitarmos as coisas que não podemos mudar, FORÇA (lobo mau) para mudar as coisas que pudermos e SABEDORIA para discernir uma da outra.
O caminho da dor não pode levar ao caminho do amor?
Mas será que existe lobo certo e lobo errado?
Fazer uma pausa para refletir com imparcialidade é importante, pois como seres humanos, temos o potencial de nos libertarmos de antigos hábitos e também de amar e nos dedicarmos aos outros. Temos a capacidade de despertar e viver conscientemente, mas também há uma forte tendência de permanecermos adormecidos. É como se estivéssemos sempre numa encruzilhada, escolhendo sem cessar o caminho a seguir. A qualquer momento podemos escolher o caminho da clareza e felicidade ou da confusão e dor.
Sandra, já assistiu YellowStone? Lá mostra demônios com honra. A história e o verdadeiro comportamento da humanidade.
Só a maturidade e o amor de minha mulher me fizeram aprender a lidar e controlar os demônios que há dentro de mim - e todos nós temos eles, mais ou menos.
Verdade, todos temos. Que bom que ela te ajudou, Marcus
Lobo, Venon - nomes que remetem à Sombra junguiana, adormecida em nosso Ãntimo , mas sempre capaz de sobressaltos e manifestações imprevisÃveis e inesperadas , quando não aprendemos a conhecê-la ou a ignoramos. Certo, Mirian?
Com certeza Eline. Não adianta nada lutar contra eles, pois só ficam mais poderosos
Miriam, sua coluna é o meu momento de reflexão. Lembro-me de um chefe que dizia, referindo-se ao trabalho, já que você está no inferno, abrace o diabo ou melhor, conheça-o, entenda-o e conviva da melhor maneira.
Adorei Sergio. E, se possÃvel, aprenda a brincar com ele. Estou aprendendoÂ…
“Je pense, donc je suis” é a frase de Descartes no Discurso do Método que Freud reformulou com a noção do inconsciente, onde a nossa "real identidade" estaria guardada: “Existo onde não penso”. Mais tarde Lacan cinzelou o esboço originário numa frase: “Penso onde não sou; portanto, sou onde não penso". De fato, se formos à raiz da nossa intranscendência animada, então haveremos de reencontrar na reentrância mais profundo do inconsciente abissal com a nossa predadora alcateia familiar.
Sou onde não penso
Na filosofia budista, precisamos fazer as pazes com nossos pensamentos e emoções mais aflitivos. Faz todo o sentido pra mim.
Ou ao menos buscar compreender o que nos faz sofrer
Como já pregavam os filósofos estoicos, para vivermos felizes precisamos de equilÃbrio em tudo, inclusive na alma, e aà entram os lobos internos, se alimentarmos somente um ele pode matar o outro e daà se tornar nosso único guia, isto é, ditador de nossas mentes. EquilÃbrio é tudo querida Mirian!
Verdade Ronaldo, os estóicos me ensinam muito a viver com mais equilÃbrio e alegria, apesar dos monstros internos e externos
Temos que aprender os códigos para controlar o Venon que há em nós ,mas não é fácil
Nada fácil
"Aonde há o isso,que advenha o eu como resposta" Freud foi brilhante nesse comentário,muitas vezes tentamos mostrar uma coisa que não somos. Tentamos não nos responsabilizar. Quando de repente um boa análise pode fazer vc conviver bem com isso.
Aceitar, reconhecer e compreender o Venom que mora dentro de nós
Exatamente
Acho que temos sempre uma imagem mais positiva de nós mesmos, que nem sempre corresponde ao que os outros veem. Resumo: qdo nosso "lobo mau" é ativado, geralmente dá besteira...
Melhor aprender a lidar com ele para não fazer besteira
Sim, nossos sentimentos e emoções precisam ser acolhidos, trabalhados e ressignificados, se necessário com o apoio de outras pessoas. A raiva, o medo e outros sentimentos ditos negativos precisam achar caminhos de expresssão para que não fiquem presos, nos corroendo por dentro. Afinal podemos ser bons e maus, alegres e tristes, compreensivos e intransigentes, ou seja, alternar dialeticamente comportamentos. Adoecedor é nos fixarmos num desses polos. Afinal, nada do que é humano nos é estranho...
Verdade Maria Isabel, acolher e aprender
Seus textos e reflexões sempre muito bons.
Fico muito feliz Sinésio
Augusto dos Anjos resumiu bem isso em Versos Ãntimos: Vês! Ninguém assistiu ao formidável Enterro de tua última quimera. Somente a Ingratidão – esta pan tera – Foi tua companheira inseparável! Acostuma-te à lama que te espera! O Homem, que, nesta terra mise rável, Mora entre feras, sente inevitável Necessidade de também ser fera.
As feras que moram dentro de nós
Agora fiquei com vontade de ver o filme.
Precisei rever para chegar à conclusão que é melhor aceitar nossos monstros internos. Eles sempre irão vencer
homo homini lupus
O homem é o lobo bom e o lobo mau do próprio homem
Ótima reflexão Mirian! Sempre tive um incomodo com essa parábola dos lobos, não conseguia imaginar parte de mim morrendo, seu texto trouxe uma luz a essa duvida.
Descobri somente agora Helio. Tem que ter coragem para aprender a aceitar e compreender o lobo mau
"Não sabeis vós que a quem vos apresentardes por servos para lhe obedecer, sois servos daquele a quem obedeceis, ou do pecado para a morte, ou da obediência para a justiça?" Romanos 6:16
Como escreveu Viktor Frankl, até mesmo nas circunstâncias mais dramáticas temos a liberdade de escolher a melhor atitude para enfrentar o sofrimento inevitável
não sei se faço boa redação da reflexão da professora e antropóloga Mirian Goldenberg, mas achei que o seu pensamento tem o respaldo do apóstolo são paulo. E o que ele está dizendo? Que não somos seres totalmente condenados a praticar "destruição" somos livres e podemos reagir e praticar a "construção"!
É preciso ter coragem para alimentar e brincar com o 'lobo mau', não é mesmo, professora? Eu prefiro deixá-lo inane.
Ele pode ser divertido Filipe, algumas vezes é melhor brincar com ele
Busca
De que você precisa?
Fale com o Agora
Tire suas dúvidas, mande sua reclamação e fale com a redação.
Mirian Goldenberg > Como transformar monstros assustadores em anti-heróis divertidos Voltar
Comente este texto